HOME | ACERCA | NACIONAL | LOCAL | MUNDIAL | DOCUMENTOS | CONTACTOS | ANTERIORES

MUNDIAL

Brasil: "O Carnaval é a nossa grande letargia, é a nossa grande fuga da realidade dura a que fomos obrigados a viver"

Por Rodrigo Bico*
Brasil de Fato
10 de Fevereiro de 2018

Se olharmos bem para o mundo e entendermos que o carnaval é uma tradição milenar e que o seu formato anárquico vai muito mais além desse período, e ao colocarmos o nosso tão novo e quincentenário país nessa régua cronológica carnavalesca, podemos chegar à conclusão que nenhum outro país tem o Carnaval como algo tão presente em sua cultura e em seu cotidiano como o Brasil.

Somos um dos últimos países do chamado ‘Novo Mundo’ a abolir a escravidão e a ter uma democracia minimamente funcional, exploraram todas as nossas riquezas o quanto puderam, dizimaram a maioria de nossas raízes indígenas e de nossas etnias que habitavam o território brasileiro antes da chegada dos portugueses por estas terras, destruímos o épico sonho de um socialismo utópico impetrado por Antônio Conselheiro e o povo de Canudos. Engolimos até hoje a sobrevivência do Coronelismo e suas perversidades, ainda não nos livramos da cultura de exploração, de machismo, racismo e preconceito da Casa Grande e Senzala. Aguentamos décadas de uma ditadura sanguinária e em tempos de democracia sofremos um Golpe parlamentar.

E com tudo isso conseguimos carnavalizar nossas vidas. Carnavalizamos muito mais além dos 4 dias de folia momesca. Transformamos nossas dores e sofrimentos em combustível para o riso. Parece que tantos golpes que o povo brasileiro sofreu e sofre ao longo da sua história fez com que aprendêssemos a olhar para a vida de outra forma, com olhos cheios de glitter e purpurina, com nosso ar repleto de confetes e serpentinas, é como se cada buzina de carro fosse uma nota de um trombone, e que todas as buzinas juntas fossem uma grande Orquestra de frevo.O cotidiano do povo brasileiro é um grande carnaval. É como se vivêssemos todos os 365 dias do ano numa grande festa. O Carnaval é a nossa grande letargia, é a nossa grande fuga da realidade dura a que fomos obrigados a viver. Pois, vivemos a grande contradição dialética e cotidiana da dor e da festa.

O povo negro inventou a capoeira para poder aprender a lutar, transformou a palavra Axé em um ritmo musical que ganhou o país, fez do samba do quintal da Tia Ciata o ritmo mais popular do Brasil. Os indígenas vão as ruas com as batidas dos pés no chão, com o som dos arcos e flechas dos Cabocolinhos e que se misturam bem ao modo brasileiro com as batidas africanas, com a fanfarrice do povo português. Criamos ritmos e maneiras de carnavalizar nossa vida o ano inteiro.

No Rio Grande do Norte os blocos carnavalescos mais tradicionais não são os dos ricos e dos pequeno-burgueses, são os ‘Cão’ da Redinha que invadem o mangue do Rio Potengi e que ganham as ruas do bairro-praia mais popular de Natal. É também o Bloco do Mela-mela da cidade de Macau, onde a cidade inteira se permite melar-se de melaço de cana, é o Bloco do Siri que sai na Redinha a mais de 30 anos com muito frevo por suas ruas. É a “Ala Ursa do Poço de Santana” ou o Bloco de Magão que para não sucumbir em meio aos paredões de forró elétrico resolveu colocar num trio elétrico sua banda de frevo e Marchinhas pelas ruas da cidade de Caicó. São as ‘Virgens’ de Pirangi Praia que se libertam de suas amarras heterossexuais e machistas e se soltam no Carnaval, ou pelo menos deveriam.

São as ‘Kengas’ do centro histórico de Natal que, diferente das ‘Virgens’ de Pirangi, são os homossexuais que buscam algum momento de protagonismo em um dos países que mais matam homossexuais no mundo. Essas manifestações são tradições que resistem e que nunca vão deixar de sair às ruas, mesmo que sejam abandonadas pelo poder público, como diversas vezes foram e que nunca deixaram de colocar o bloca na rua.

No carnaval a administração das cidades devem ser entregues ao Rei Momo e a Rainha, simbolicamente isso representa que vivemos em um período onde o povo é quem administra, ou melhor é povo quem não administra, e que ao não preocupar-se em administrar nada, acaba por sua vez criando um verdadeiro poder paralelo de auto-organização. No verdadeiro carnaval popular não deveríamos identificar diferença entre classes, não deveríamos identificar orientações sexuais e preconceitos de gênero, todos deveriam manifestar-se livremente sem qualquer olhar julgador, quando o povo toma conta dessa coisa toda é como se vivêssemos em quatro dias de uma grande revolução popular, mas infelizmente a rubra cor da luta, do beijo e do batom borrado vira cinzas na quarta-feira, mas os corações revolucionários continuam a pulsar o vermelho da luta e da revolução.


*Rodrigo Bico é artista e produtor cultural